domingo, fevereiro 06, 2011

 

ÓBITO

Na terra onde nasci, faz-se uma festa quando morre alguém, É uma coisa que os "brancos" nunca perceberam muito bem, por mais cafrializados que tivessem ficado. Bebe-se, come-se, xinguila-se e chora-se muito. Esta parte é imprescindível e, para isso, contratam-se as carpideiras, talvez no que de mais próximo há com os enterros da província. Um morto tem de ser chorado. Aos gritos, em soluços e gemidos angustiantemente prolongados, acompanhados de arrepelar de cabelos e espasmos dos membros superiores e inferiores.

Nos meus mortos, nunca houve nada disso. Somos todos demasiado discretos, demasiado contidos na nossa dor para que nos permitíssemos tais figuras. De tal forma que, no enterro da minha mãe, de repente, a prima da empregada que havia começado a trabalhar na nossa casa há 15 dias, desatou numa gritaria que a todos assustou. Africana de origem, deve ter pensado que éramos uns desleixados, uns filhos ingratos, uma família miserável por deixar que aquele ente tão querido se fosse assim, sem o devido acompanhamento sonoro.

Sete dias depois, lá na banda, "varrem-se as cinzas". E há mais festa, muita comida e bebida, muita incorporação de espíritos, na verdadeira celebração da passagem que é a morte. Gente tão sábia aquela...

Eu não sei fazer nada disso. E devia. Porque, desde pequena, sempre achei que seria capaz de matar alguém, numa situação-para-mim-limite o que, necessariamente, me dá maior responsabilidade na forma como deveria cuidar do defunto resultante. A verdade é que só consigo imaginar-me a braços com o morto, literalmente. Sem saber como chorá-lo porque o decoro não me permite gritar, nem gemer, nem soltar sequer um inaudível soluço. Sem saber onde o guardar, sem ter a quem confessar que o homicídio cometido só foi porque teve mesmo de ser e que eu só quero tratar de tudo com a dignidade que o morto deveria merecer, embora tenha cometido a loucura de ceder à exaustão, acertando-lhe um tiro certeiro.

O problema é que, sem os rituais devidos, arrisco-me a ser perseguida pela sua alma penada e danada. O que me levará ao Inferno em vida.

Comments:
Gosto... confessando que já matei, que já enterrei, mas raramente chorei. Porque a morte é tão figurada... Beijinhos!
 
Nada te levará ao Inferno, nem na vida, nem na morte! Eu sou uma das pessoas que não o vai permitir. Beijinho da tua ...
 
Bem...há menos de duas semanas tive infelizmente um funeral à moda da nossa terra...não, não houve carpideiras, mas houve um entoar belíssimo do Muxima, como encomendação do corpo a Nossa senhora, e acredita que o meu corpo vibrou, quis colocar ainda mais cá fora, quis gritar...mas como tu contida... limitei-me a cantar e a chorar, apenas lágrimas.

E, ei...se quiseres na altura(nunca existirá esse momento, nunca o farás, e eu sei...) eu estarei perto e farei o ritual.
Jinhos
 
Miúda(nada má), acho que o problema está em não se chorar devidamente. De todas as maneiras: chorar de dor, de revolta, de raiva. Mesmo quando fomos nós a empunhar a pistola que deu o tiro.
 
Anónima: obrigada. sabes que conto contigo. mas o Inferno é inevitável. agora e depois.
 
Maria Clarinda: o que vale é que o Pai nos reserva algumas surpresas. E a Maria Clarinda foi um presente que recebi há pouco. Sinto franqueza em cada uma das suas palavras. E, neste momento de muita dor, não terei qualquer hesitação em contar consigo. Obrigada.
 
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